Este será o primeiro de cinco post que falarei sobre “uma proposta metodológica inclusiva” que desenvolvi ao longo de algumas trilhas da minha trajetória acadêmica e profissional.
Quando ingressei no Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas na UFMA, estava num processo de perda de visão agressivo e dolorido. Sentia fortes dores e inflamações nos olhos, enxaqueca, dores de ouvido e a minha mobilidade estava extremamente comprometida.
Diariamente, meu esposo me levava para assistir aula. Chegávamos cedo, para que ele pudesse me ensinar andar sozinha no prédio em que estudava. O objetivo disso, era melhorar minha mobilidade no curso e na universidade. Durante as aulas, minhas dificuldades eram imensas, não conseguia acompanhar as leituras e nem as discussões em sala. Os recursos que facilitavam meus estudos, que eu tinha em casa, eram insuficientes. Em razão disso, busquei outras estratégias. Primeiramente, pedi um vídeo ampliador na coordenação do curso, o que foi me concedido cerca de dois meses depois. Meu direito de uso desse equipamento era somente nas dependências do Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas.
Assim, eu tinha apenas um turno para usar o vídeo ampliador, porque, em outro turno eu estava em sala de aula. O resultado é que eu nunca conseguia fazer todas as leituras necessárias. Pedi aos professores e professoras que disponibilizassem a ementa da disciplina com antecedência, mas, muitos esqueciam e não me enviavam. Passei a pedir na coordenação mas, na maioria das vezes não me enviavam, ou enviavam um documento em formato de imagem, no qual eu não conseguia ler. Comecei a gravar as aulas, mas, nessa época, a sensibilidade da minha audição prejudicava o entendimento de alguns sons, principalmente, da voz humana.
Percebi que todas as estratégias que havia criado para facilitar meus estudos e garantir minha permanência no curso fracassaram ao ponto de pensar que a única solução racional e viável seria o trancamento ou abandono. Porém, resisti buscando permanecer no curso.
Percebi que seria necessário criar estratégias que me adequassem ao jogo social realizado na universidade. Estava explícito que eu era a figura “aversa” em relação aos agentes que estavam inseridos nesse jogo. Meu processo de produção científica era extremamente diferente dos deles. Além disso, existiam enormes barreiras físicas e emocionais pelo fato de eu não enxergar. O fato de procurar estratégias para me inserir nesse jogo, não significa que eu decidi seguir todas as regras ou participar das mesmas disputas que os demais participantes, pois, no meu caso, isto seria impossível, porque, “naturalmente”, eu já estava numa condição de extrema desigualdade de condição. Porém, procurei em alguns momentos fazer o jogo duplo, agindo de acordo com meus interesses ao mesmo tempo que mantinha as aparências de obediência às regras. Bourdieu (2004, p. 81) chama “jogo duplo”, a estratégia que permite produzir uma infinidade de lances possibilitados pelo jogo.
Decidi falar sobre minhas limitações e sobre minha deficiência. No momento em que falava, algumas pessoas demonstravam compaixão e me auxiliavam principalmente, na mobilidade, só que este auxílio ocorria somente no momento em que havia terminado de falar das minhas limitações. Diariamente, ouvia falas e vivenciava atitudes que intensificavam minha exclusão no curso e na própria universidade.
Posteriormente, várias pessoas que estudaram comigo no mestrado me falaram que no decorrer do curso evitaram se aproximar de mim com medo de se tornarem minhas guias. Outras me relataram que não sabiam como falar comigo, porque tinham medo e pena de mim, imaginavam que no meu dia a dia eu dependeria totalmente de uma pessoa vidente, etc.
No post seguinte falarei sobre exclusão no ambiente acadêmico e como consegui agir para vencer inúmeras barreiras atitudinais, sociais e comunicacionais.
REFERÊNCIAS
BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. Lisboa: Difel, 1989.
BOURDIEU, Pierre. Coisas ditas. São Paulo. Brasiliense, 2004.
BOURDIEU, Pierre.Meditações Pascalianas. Rio de Janeiro. Bertand, 2007.
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CORDEIRO, Zeneide Pereira. Os awá e o mundo dos karaiw. (Dissertação de mestrado). Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas – UFMA, São Luís, 2019.
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